A violência doméstica é um crime público e, constantemente, as autoridades e as entidades competentes apelam à sociedade para a responsabilidade coletiva de o denunciar. Mas apesar dos esforços registados nos últimos anos, os números continuam a ser assustadores, e, só no mês de janeiro, houve cinco mortes por violência doméstica.
Mas se há histórias que terminam de forma fatídica, também é de recordar que há casos em que as vítimas conseguem pedir ajuda e levar a cabo o seu processo de “libertação”. Para ajudar a concretizar isto, existem redes de apoio nacionais conhecidas como a APAV (Associação Portuguesa de Apoio à Vítima), UMAR (União de Mulheres Alternativa e Resposta), CIG (Comissão para a Cidadania e a Igualdade de Género), entre outras. No entanto, também foram criadas estruturas ligadas aos municípios que fazem este trabalho de modo mais local. Uma delas é a Flor-de-Lis – Serviço de Apoio à Vítima de Violência Doméstica de Lousada.
Criado em 2007, o nome do gabinete Flor de Lis teve como inspiração o símbolo do escutismo mundial, sendo que o seu serviço pretende, segundo a vereadora da Ação Social da Câmara Municipal de Lousada, Maria do Céu Rocha, privilegiar “o sentido de orientação, a procura da direção certa e a capacidade de escolha de cada um”.
Este gabinete de apoio está integrado na Rede Intermunicipal e Integrada de Apoio à Vítima – RIIAV do Tâmega e Sousa, promovida pela Comunidade Intermunicipal (CIM) do Douro, Tâmega e Sousa. Apesar disso, este apoio gratuito é dirigido a todas as vítimas de violência doméstica, sejam elas crianças, jovens, pessoas adultas ou idosas, residentes ou não na região da CIM do Douro, Tâmega e Sousa.


O foco principal da intervenção do gabinete Flor-de-Lis, adianta a responsável, “assenta na segurança das vítimas de violência doméstica, tendo sempre em atenção que o momento de revelação/denúncia dos factos é particularmente problemático, um verdadeiro momento de crise”, sendo que, “muitas vezes, o silêncio, a vergonha e o sentimento de impotência domina as vítimas, tornando difícil o processo de intervenção terapêutica e a quebra do segredo”. Assim, e através dos apoios social, psicológico e jurídico, o objetivo é promover a autonomia destas vítimas, assegurar as condições de segurança e o minimizar o risco de revitimização, enquanto também recebem apoio e incentivo “para a reconstrução do seu projeto de vida”.
APOIO SOCIAL
A estrutura de atendimento à vítima é constituída então por uma equipa multidisciplinar, com técnicos especializados na área social, psicológica e jurídica, que promovem um acompanhamento especializado, personalizado e confidencial. Apoio esse que não carece da apresentação prévia de uma denúncia. Mas, no caso desta ser feita, os Órgãos de Polícia Criminal e o Ministério Público recolhem o consentimento das vítimas relativamente ao encaminhamento para as estruturas de atendimento, que atribuem um técnico gestor do processo, que fará o primeiro atendimento, bem como todo o acompanhamento necessário, caso as vítimas mantenham o seu consentimento para esta intervenção.
O primeiro contacto é, nas palavras da vereadora, “um momento fundamental para o futuro da própria vítima, uma vez que se pode tornar o início de uma nova etapa de oportunidades face à situação de violência que a mesma vivenciou até ao momento”. É na sequência deste primeiro atendimento que surge o acompanhamento social, no qual é elaborado um plano de segurança, em conjunto com a vítima, que faz um levantamento da situação relatada, assim como um plano individual de intervenção, em que é trabalhado o projeto de vida das vítimas, perspetivando o futuro.
APOIO PSICOLÓGICO
“A exposição a contextos de violência doméstica é um fator de risco para o desenvolvimento ou agravamento de problemas de saúde psicológica”, sendo os quadros mais comuns nomeados pela vereadora os de depressão, ansiedade, disfunção sexual, perturbações do comportamento alimentar e perturbações do sono. Com isto em mente, este gabinete também disponibiliza apoio psicológico, assegurado por dois psicólogos do serviço da psicologia do Município de Lousada.
É neste contexto que Maria do Céu Rocha relembra que “o impacto destas experiências é variável e depende de fatores internos e externos à pessoa vitimada, como a idade, a frequência, a intensidade e o padrão de violência, bem como da rede de apoio de que a vítima dispõe (formal e/ou informal), características pessoais e recursos internos e externos”. Daí a importância deste apoio personalizado e especializado.
APOIO JURÍDICO
O apoio jurídico é garantido por juristas, uma do Município de Lousada e outra da CIM. O papel destes profissionais passa por, no geral, informar a vítima de crime dos seus direitos e elucidar acerca das várias etapas de determinados processos judiciais. Por ser um processo burocrático, demorado e complicado, a vereadora considera que “é muito importante que a vítima seja esclarecida, desde logo, sobre a forma como decorre o procedimento criminal, permitindo-a enquadrar o seu próprio papel no mesmo”, acrescentando que “quanto mais esclarecida a vítima estiver, quer sobre os seus direitos quer sobre os seus deveres, maior é a possibilidade de colaboração com as entidades judiciárias, tornando assim maior a probabilidade de um processo profícuo”.
PARCERIAS
Maria do Céu Rocha confessa que “o conceito de violência doméstica e a forma como a sociedade olha para este fenómeno tem sofrido alterações ao longo do tempo, muito decorrente da alteração dos padrões educacionais, valorativos e do funcionamento da nossa sociedade”, pelo que é necessária uma intervenção articulada entre várias entidades parceiras.
Algumas dessas parcerias concretizaram-se através da Rede Municipal Especializada de Intervenção, no âmbito da Violência Doméstica do Município de Lousada, constituída por diversos parceiros (GNR, Ministério Público, Saúde, CPCJ, Segurança Social); da Rede Unidas, na qual está inserido o Flor-de-Lis no âmbito do Protocolo para a Territorialização da Rede Nacional de Apoio às Vítimas de Violência Doméstica, num total de 42 entidades; e do protocolo entre a Rede Social/Conselho de Ação Social de Lousada (CLAS) e o Ministério Público da Comarca do Porto Este.


JOVENS
“Enquanto poder local”, a vereadora reconhece “esta problemática como sendo de extrema pertinência e preocupação”, considerando, por isso, “fundamental o envolvimento de outros organismos e instituições que possam intervir junto das crianças e jovens”.
Assim, explica, a “prevenção primária tem merecido especial atenção da nossa parte com a realização de várias ações de sensibilização junto da população em geral, e em particular dos mais novos”, acrescentando que acredita que “as autarquias devem assumir o compromisso na capacitação da comunidade educativa, para que possam compreender o impacto psicológico da violência doméstica nas crianças e jovens, identificar sinais de alerta e implementar estratégias de apoio eficazes”.
Para isso, o Flor-de-Lis promove, anualmente, várias sessões de sensibilização nos Agrupamentos de Escolas do concelho, “com o objetivo de sensibilizar e alertar para a problemática da violência no namoro”. Além disso, também desenvolve outras ações/atividades, com o objetivo de promover a consciencialização da comunidade acerca das temáticas relacionadas com a violência doméstica, a igualdade de género e não discriminação, violência no namoro, violência na terceira idade, “procurando assim modificar crenças e estereótipos, bem como desenvolver competências e forças promotoras da igualdade”.
Esta estrutura de atendimento também criou um espaço de intervenção em grupo com as vítimas de violência doméstica, designado o Espaço 3’Fs (Falar, Fortalecer e Formar), que, em sessões quinzenais, visa a promoção do seu empoderamento e autonomização, através da partilha das experiências vivenciadas pelos elementos do grupo.
Por sua vez, a Rede Unidas desenvolve, nos 11 municípios da Comunidade Intermunicipal, a atividade designada “Let’s Talk About”, que visa promover uma reflexão sobre a violência doméstica e no namoro, entre outros temas, direcionados aos jovens do 9.º e 10.º ano de escolaridade.
Em 2024, o Flor-de-Lis acompanhou cerca de 172 vítimas de violência doméstica, sendo que deste número, 70 correspondem a famílias com filhos menores. A vereadora Maria do Céu Rocha alerta para o facto do total de vítimas em acompanhamento, ter “vindo a sofrer um aumento significativo”, sendo que em 2022 foram 92 e em 2023, 116. No ano passado, foram realizados cerca de 901 atendimentos sociais, 175 jurídicos e 135 acompanhamentos psicológicos.
Se precisar de ajuda, não hesite em contactar este serviço através dos contactos 255 820 500/255 820 551, sendo que o horário de atendimento é das 9h às 12h30 e, depois, das 14h às 17h30.