10 dezembro 2025, 21:38
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    InícioReportagemCORAGEM, CIÊNCIA E ESPERANÇA: A TRAJETÓRIA DE UMA CIENTISTA LOUSADENSE

    CORAGEM, CIÊNCIA E ESPERANÇA: A TRAJETÓRIA DE UMA CIENTISTA LOUSADENSE

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    Aos olhos de muitos, crescer numa pequena vila como Lousada podia significar ter sonhos limitados. Mas não para Flávia. Desde cedo, descobriu na curiosidade e na vontade de ensinar um caminho que, anos mais tarde, a levaria ao reconhecimento internacional. 

    Cresceu em Lousada, sonhou ser professora, inspirou-se nos seus docentes e transformou a curiosidade de criança em carreira científica. 

    A infância foi marcada por gestos simples, mas cheios de significado. Flávia recorda-se de pedir à professora da irmã para deixar que ajudasse os mais novos, durante as férias de verão, “e foi aí que nasceu o meu sonho”, recorda a doutora.

    Era apenas uma menina, mas já sentia prazer em partilhar o que sabia. Esse entusiasmo, aparentemente inocente, foi o primeiro sinal de que o ensino e a ciência seriam parte do seu destino.

    Na sala de aula, os olhos brilhavam de interesse, não apenas pela matéria, mas pela forma como o conhecimento podia mudar vidas, “crescer em Lousada foi fundamental para a pessoa e profissional que sou hoje. Desde cedo sonhei ser professora, e isso deve-se em muito aos excelentes professores que tive na escola primária e secundária”, recorda.

    Quando chegou o momento de decidir o futuro, parecia natural seguir uma carreira ligada à farmácia. Era o caminho mais estável, o que todos esperavam dela. Mas o coração queria mais. Foi no mestrado em Ciências Farmacêuticas que descobriu a investigação — e, com ela, a sensação de ter encontrado finalmente o seu lugar no mundo, “foi durante o meu mestrado em Ciências Farmacêuticas. Pela primeira vez tive contacto com investigação científica e fiquei fascinada. Lembro-me de ir procurar professores e perguntar: “Tem algum projeto em que eu possa trabalhar?”. Eu queria mais do que apenas terminar um curso — queria aprender, descobrir, criar. Foi nesse momento que percebi que investigação era o caminho que queria seguir.”, explica Flávia.

    A descoberta da investigação abriu-lhe portas para um mundo que, até então, parecia distante e incansável. Mas os caminhos que escolheria seriam marcados por decisões desafiadoras e momentos que definiriam toda a sua trajetória.

    Um desses momentos foi receber uma bolsa mista para o doutoramento, que a obrigava a passar longos períodos fora de casa, “sempre fui muito ligada à minha família, e essa bolsa implicava passar tempo no estrangeiro. Foi assustador, mas ao mesmo tempo transformador: deu-me liberdade, abriu-me horizontes e mostrou-me um mundo que eu não sabia que existia”, lembra Flávia.

    Partir não foi fácil. Lousada ficou para trás, mas nunca saiu do coração.

    Seguiu-se o pós-doutoramento em Londres, no prestigiado Imperial College, experiência que moldou muitas das ideias que hoje guiam a sua investigação.

    Mais recentemente, decidiu aceitar ser professora na Holanda, “estava muito bem na Suíça, mas não tinha o meu próprio grupo de investigação. O meu sonho sempre foi ser professora e liderar ciência. Foi uma decisão difícil, cheia de sacrifícios pessoais, mas necessária para dar o salto”, explica.

    Londres, Suíça, Holanda: cada destino trouxe conquistas e sacrifícios. 

    Apesar destas conquistas, o caminho nunca foi isento de desafios. Cada passo exigiu, resiliência e a capacidade de enfrentar momentos de dúvida e frustração, “rejeições de projetos, momentos de dúvida, a distância da família. Lembro-me de passar meses a preparar candidaturas a financiamento ao mesmo tempo que passava desafios pessoais em casa e receber rejeições, é devastador”, confessa.

    A distância da família, muitas vezes, parecia quase insuportável. Para manter viva a ligação às suas raízes, transformou cada viagem de regresso a Lousada num ritual: reencontrar a família, os amigos e os lugares que a moldaram tornou-se um ponto de equilíbrio essencial, “fiz das viagens a casa um ritual, para nunca perder o contacto com os meus e as minhas raízes”, acrescenta.

    No fim, cada obstáculo superado tornou-se combustível para a sua ambição e cada dificuldade fortaleceu a sua convicção de que podia abrir caminho com trabalho, disciplina e persistência, “aprendi a transformar rejeições em motivação — cada “não” apenas me deu mais vontade de provar que era possível”, afirma Flávia. 

    O caminho da ciência é feito de glórias e derrotas silenciosas e Flávia conhece bem ambas. 

    Hoje, Flávia lidera uma investigação que pode mudar o destino de quem enfrenta uma das doenças mais cruéis: o cancro cerebral. As nanovacinas que desenvolve prometem ensinar o sistema imunitário a reconhecer e destruir células tumorais, atravessando barreiras que até agora pareciam intransponíveis.

    O caminho, no entanto, não foi linear. No início, recebeu várias rejeições, incluindo em Portugal, quando concorreu duas vezes ao CEEC com esta ideia. Mas a persistência e a confiança no seu projeto abriram novas portas, “quando levei o projeto para a Suíça, acreditaram em mim e concederam-me 250 mil euros para o desenvolver. Foi a prova de que, mesmo quando tudo parece contra nós, se acreditarmos e insistirmos, conseguimos abrir caminho”, explica.

    A história deste projeto é uma prova de que a ciência exige mais do que um talento, exige coragem para insistir, mesmo diante de obstáculos. Cada fase desta investigação reflete a dedicação incansável de Flávia e a sua crença do que é possível transformar ideias em soluções que podem salvar vidas.

    A doutora lidera, agora, uma investigação e cada avanço no seu laboratório representa uma esperança concreta para pacientes e famílias em todo o mundo.

    “As nanovacinas que desenvolvemos funcionam como pequenos mensageiros programados para treinar o sistema imunitário a reconhecer e atacar as células do cancro. No meu caso, usamos uma molécula de RNA especial, que ao entrar nas células do corpo começa a produzir sinais semelhantes a proteínas tumorais. É como mostrar ao sistema imunitário uma “fotografia” muito fiel do inimigo, para que ele aprenda a identificá-lo”, explica Flávia.

    O que distingue esta abordagem inovadora é a proteção que o RNS recebe dentro de manopartículas extremamente pequenas, feitas de lípidos ou polímeros biodegradáveis, “estas nanopartículas atuam como cápsulas inteligentes: protegem a informação genética até chegar ao tumor e ajudam-na a ser libertada exatamente no local certo”, acrescenta.

    O impacto potencial das nanovacinas é enorme. O cérebro é um dos órgãos mais difíceis de tratar devido à barreira hematoencefálica, que impede a passagem da maioria dos medicamentos, “as nossas nanovacinas são desenhadas para atravessar essa barreira e atuar diretamente no microambiente tumoral. Se forem bem-sucedidas, poderão transformar a forma como tratamos tumores cerebrais como o glioblastoma, uma das formas mais agressivas e fatais de cancro, mas também outras doenças neurodegenerativas”, afirma. 

    No fundo, o objetivo da investigação de Flávia é ambicioso e inspirador: dar ao próprio corpo a capacidade de lutar contra o tumor, “o que estamos a tentar fazer é dar ao próprio corpo a capacidade de lutar contra o tumor — de dentro para fora — com precisão, inteligência e esperança”, conclui.

    Cada etapa deste trabalho reflete não apenas ciência de ponta, mas também a determinação e paixão de uma investigadora que acredita que a inovação e a persistência podem redefinir limites e trazer esperança onde antes havia medo.

    O reconhecimento internacional chegou através do APS Emerging Scientist Award, um prémio que distingue cientistas emergentes pelo impacto e inovação do seu trabalho. Para Flávia, receber esta distinção foi um momento de emoção intensa e reflexão profunda, “foi um momento de enorme gratidão e, ao mesmo tempo, de grande responsabilidade. Quando recebi a notícia, pensei nas pessoas que sempre acreditaram em mim, mas também em todos os “nãos” que tantas vezes me fizeram duvidar se conseguiria chegar até aqui”, revela. Cada obstáculo ultrapassado, cada dificuldade enfrentada, tornou-se agora parte da história que este prémio reconhece, mostrando que a perseverança vale sempre a pena.

    Mais do que um prémio pessoal, Flávia vê esta distinção como uma validação do valor da investigação científica que lidera, “mais do que um reconhecimento individual, vejo-o como uma validação de que a investigação em nanovacinas para tumores cerebrais tem valor e futuro. Para mim, foi como ouvir a mensagem: continua, o que estás a fazer importa”, explica.

    O momento trouxe ainda um sentimento de orgulho pelo reconhecimento internacional, especialmente pelo facto de ter alcançado este prémio sem estar num dos grandes centros científicos do mundo, “Senti-me muito honrada por ver o meu trabalho reconhecido por uma comunidade internacional tão prestigiada — e, de forma especial, por ter alcançado este reconhecimento mesmo sem estar num centro científico como o Reino Unido ou os EUA. É uma prova de que o mérito pode falar mais alto do que a geografia”, conclui Flávia.

    Este prémio simboliza não apenas reconhecimento, mas também responsabilidade: continuar a explorar, inovar e transformar a ciência em algo que possa realmente fazer diferença na vida das pessoas. Para a professora doutora, cada conquista é um passo de muitos que ainda deseja dar, sempre guiada pelo propósito de salvar vidas e inspirar outros jovens cientistas.

    Receber o APS Emerging Scientist Award é muito mais do que uma distinção pessoal. É uma “validação de anos de esforço, resiliência e paixão pela investigação. É a prova de que, mesmo vinda de uma vila pequena como Lousada e sem seguir o percurso académico mais tradicional, foi possível conquistar reconhecimento internacional. É um incentivo enorme para continuar e, ao mesmo tempo, um lembrete de que este é apenas o início do caminho que quero trilhar”, afirma.

    Mas o significado do prémio ultrapassa a sua trajetória. Flávia vê nele uma mensagem poderosa para a ciência portuguesa: o talento formado em Portugal tem qualidade para competir e sobressair a nível internacional, “Para a ciência portuguesa, acredito que este prémio mostra algo muito importante: que o talento formado em Portugal tem qualidade para se destacar a nível mundial. Apesar das dificuldades estruturais e da falta de oportunidades que muitas vezes enfrentamos no nosso país, este reconhecimento demonstra que a formação que recebemos é sólida e competitiva”, explica.

    A motivação diária nasce do propósito de vida, “o que me motiva todos os dias é o meu propósito de vida: acreditar que, através da investigação, posso salvar vidas. Essa missão dá-me força para enfrentar desafios, persistir diante das dificuldades e continuar a explorar soluções que possam realmente fazer a diferença para os pacientes.”

    Olhando para o futuro, os objetivos são claros e ambiciosos. A prioridade passa por fortalecer a equipa com financiamento sólido, avançar para ensaios clínicos e expandir o impacto das nanovacinas para além do cancro cerebral, explorando também doenças neurodegenerativas, “Os meus próximos objetivos passam por fortalecer a minha equipa através de financiamento sólido, avançar para ensaios clínicos e expandir o impacto das nossas nanovacinas além do cancro cerebral, explorando também doenças neurodegenerativas”, afirma.

    A missão não se limita à ciência: envolver e apoiar jovens cientistas portugueses faz parte da sua visão de futuro, “quero também ter impacto na sociedade como tenho feito com o premio Dr. Mário Fonseca, ajudar jovens cientistas portugueses a alcançarem o seu sonho”, sublinha.

    O conselho de Flávia ressoa como um chamado à coragem e à ambição. Cada palavra é um lembrete de que o percurso científico não se limita às salas de aula ou aos laboratórios: trata-se de explorar, experimentar e desafiar os próprios limites.

    “Não tenham medo e acreditem no vosso valor. Saíam do seu círculo, explorem o mundo, porque a experiência internacional transforma não só a carreira, mas também a pessoa que se torna. Arrependo-me de não ter começado mais cedo a minha carreira internacional, por não acreditar suficientemente no meu próprio valor. Voem alto — vão crescer mais do que imaginam”. 

    O percurso mostra que a ciência não é apenas uma carreira, mas uma forma de tocar vidas, abrir portas para o impossível e transformar sonhos em realidade. E, acima de tudo, revela que acreditar em si mesmo e persistir, mesmo quando tudo parece difícil, pode mudar não só o futuro de quem investiga, mas também o destino de muitos que beneficiam desse trabalho.

    No fundo, a mensagem que permanece é poderosa, simples e inesquecível:

    “As dificuldades transformam pessoas!”

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