10 dezembro 2025, 21:41
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    PALAVRAS QUE CUIDAM: A LOUSADENSE QUE LEVOU A LINGUÍSTICA À LINHA DA FRENTE DA SAÚDE

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    Há histórias que surpreendem não só pelo destino que atingem, mas pelo caminho que traçam. É o nome de Ana Luísa Fernandes, uma jovem lousadense que este ano ficou gravado no mapa nacional da investigação em linguística. Com um percurso invulgar, que começou nas Ciências Farmacêuticas e se redirecionou para a Linguística, Ana Luísa acaba de conquistar o Prémio CAIDI 2025, atribuído à melhor comunicação oral no ano XIX Fórum de Partilha Linguística, promovido pelo Centro de Linguística da Universidade Nova de Lisboa.

    Este reconhecimento nacional não é apenas uma distinção académica. É também a validação de um projeto profundamente interdisciplinar, que procura aplicar o conhecimento linguístico a um dos setores mais sensíveis e complexos da sociedade: a saúde. O trabalho que lhe valeu o prémio é desenvolvido no âmbito da sua tese de mestrado em Linguística na Faculdade de Letras da Universidade do Porto, e foca-se na estrutura temporal de relatórios clínicos de doentes com Leucemia Mieloide Aguda, acompanhados no IPO-Porto.

    A motivação para este tema não surgiu por acaso. Foi o resultado de uma inquietação prática com um problema real, como Ana Luísa explica: “A motivação surgiu da constatação de um problema real: uma parte significativa da informação nos registos eletrónicos de saúde está em formato narrativo e não estruturado, o que dificulta a sua reutilização em contextos clínicos ou científicos.”

    É a partir desta constatação que nasce a proposta inovadora da investigadora: usar a anotação temporal como ferramenta para estruturar narrativas clínicas, tornando-as legíveis por sistemas automáticos e, assim, potenciando o uso de técnicas de processamento de linguagem natural.

    Este processo — aparentemente técnico — tem implicações muito concretas na vida real: pode permitir, por exemplo, identificar padrões clínicos, facilitar o cruzamento de dados e tornar mais eficaz a triagem para ensaios clínicos. Ana Luísa resume esse objetivo de forma clara: “No fundo, trata-se de contribuir para tornar a informação clínica mais acessível, reutilizável e orientada para uma medicina mais personalizada — sempre com salvaguarda dos princípios éticos e da proteção dos dados dos doentes.”

    A relação entre linguagem e saúde pode parecer, à primeira vista, distante. Mas no caso de Ana Luísa, essa ligação foi sendo construída com consistência. Formada inicialmente em Ciências Farmacêuticas, encontrou na Linguística um novo campo onde aplicar o mesmo espírito científico e analítico, “O que me cativa na Linguística é o facto de estudarmos algo profundamente humano: a linguagem. É através dela que pensamos, comunicamos, damos sentido ao mundo. Curiosamente, esse entusiasmo não está assim tão longe do que me motivava nas Ciências Farmacêuticas. Também aí há um fascínio pelos mecanismos complexos, pela observação e pela aplicação prática do conhecimento.”

    Na sua transição entre áreas, encontrou pontos comuns que hoje considera essenciais para o seu trabalho enquanto investigadora: “A farmácia ensina-nos a ser metódicos, atentos ao detalhe, e a procurar compreender para melhor agir. E esses princípios são surpreendentemente próximos dos que orientam a investigação em Linguística, sobretudo quando aplicada a contextos clínicos e de saúde.”

    A distinção recebida foi, para Ana Luísa, não apenas uma conquista individual, mas também uma confirmação de que vale a pena investir em áreas híbridas, em investigações que saem dos percursos convencionais e arriscam novas ligações entra campos do saber, “Mais do que mudar a forma como olho para o meu percurso, reforça a confiança no caminho que tenho vindo a trilhar. É um reconhecimento que traz consigo uma renovada motivação e um sentido acrescido de responsabilidade.”

    No entanto, nunca se esquece que por detrás de cada projeto está sempre uma equipa, e que a ciência é um trabalho coletivo e colaborativo, “A investigação é sempre um trabalho coletivo, sustentado pelo diálogo, pelo apoio e pela partilha de ideias. Quero, por isso, expressar o meu profundo agradecimento à equipa de investigação em narrativas clínicas do Laboratório de Inteligência Artificial e Apoio à Decisão do INESC TEC, que me tem apoiado com dedicação e generosidade, e em particular à minha orientadora, professora Purificação Silvano, que me guia com uma mistura rara de exigência, rigor e humanidade.”

    Com o prémio, veio também a oportunidade de dar visibilidade a uma área que ainda permanece, para muitos, invisível. A Linguística, tantas vezes associada apenas ao ensino das línguas, é aqui mostrada como uma ferramenta poderosa ao serviço da inovação tecnológica e da saúde, “Acredito que este prémio possa contribuir para dar maior visibilidade à Linguística — tanto que, aliás, é graças a essa visibilidade que estou a poder dar esta entrevista ao TVS.”, comenta Ana Luísa.

    E ainda acrescenta, “A Linguística fornece as ferramentas e conceitos essenciais que permitem a estas máquinas lidar com a complexidade da linguagem humana — desde a segmentação de palavras e análise sintática até à resolução de ambiguidades semânticas e à compreensão do contexto pragmático. Este prémio é um sinal claro do papel decisivo que a Linguística aplicada desempenha na construção do futuro da comunicação e da inteligência artificial.”

    Este compromisso com a ciência e com a sociedade não termina aqui. Ana Luísa já está inscrita no Doutoramento em Ciências da Linguagem e o seu próximo desafio será ainda mais ambicioso: estudar as relações discursivas implícitas em textos clínicos, algo que exige um nível de análise semântica e computacional mais profundo, “O meu foco principal será a caracterização semântica das relações discursivas em narrativas clínicas, combinando uma abordagem teórica com ferramentas computacionais. Trata-se, em particular, de investigar as chamadas relações discursivas implícitas — ou seja, aquelas em que não há marcadores explícitos como ‘porque’, ‘mas’ ou, ‘entretanto’, mas que os leitores humanos conseguem inferir.”

    Com essa investigação, espera ajudar a construir modelos de linguagem capazes de gerar relatórios médicos sintéticos mais fiéis à linguagem humana e mais úteis para a prática clínica, “Superar este desafio permitirá, por exemplo, gerar relatórios médicos sintéticos mais precisos e realistas através da inteligência artificial, contribuindo para mitigar os desafios éticos ligados à utilização de dados clínicos reais.”, afirma Ana Luísa.

    Apesar do percurso académico exigente, Ana Luísa mantém o foco naquilo que considera essencial: usar o conhecimento ao serviço do cuidado, “O que me move é poder usar a Linguística para melhorar a prática clínica. Libertar os profissionais da sobrecarga documental, para que possam focar-se no que mais importa: cuidar das pessoas.”

    De Lousada para o mundo, a história de Ana Luísa Fernandes é exemplo de como a ciência, mesmo quando feita de palavras, pode transformar realidades — e aproximar-nos de um futuro mais humano, mais justo e mais inteligente. Através da linguagem, devolve-nos a esperança de uma ciência mais humana — feita para cuidar.

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